Estamos prolongando demais a vida dos nossos pets? Especialistas discutem os limites éticos da medicina veterinária moderna
Avanços na medicina, laços afetivos e dilemas sobre qualidade de vida de cães e gatos levantam debate sobre até onde devemos ir para prolongar a vida dos animais de estimação.
A expectativa de vida dos pets nunca esteve tão alta. Cães vivem hoje quase o dobro do que há quatro décadas, e gatos domésticos chegam a viver até o dobro do tempo de seus parentes selvagens. Segundo um levantamento de 2023 da Allianz Global Investors, a combinação de avanços médicos, alimentação de melhor qualidade e cuidados cada vez mais semelhantes aos destinados a humanos contribuiu para essa transformação.
Se, por um lado, é cada vez mais comum encontrar cães e gatos com mais de 15 ou até 20 anos, por outro surge uma pergunta delicada: será que estamos realmente garantindo qualidade de vida a esses animais, ou apenas prolongando o inevitável às custas do bem-estar deles?
O dilema dos tutores: amor incondicional x limites da medicina
Casos como o do professor Manoel Pereira de Araújo, de 47 anos, ilustram bem esse dilema. Tutor de dois pugs irmãos, Haron e Amy, Manoel passou por situações difíceis em que precisou decidir entre continuar tentando tratamentos complexos — e caros — ou aceitar a finitude.
Em 2017, Amy foi diagnosticada com leucemia. Durante 13 dias de internação, Manoel e a esposa rodaram São Paulo em busca de bolsas de plaquetas para transfusões. “Decidi que iria até as últimas consequências para salvá-la”, relembra. Mesmo assim, Amy não resistiu, e a família teve de lidar não apenas com a dor da perda, mas também com uma dívida de R$ 30 mil.
Anos depois, foi a vez de Haron adoecer. Com 14 anos e já debilitado, o cão apresentou cirrose medicamentosa. Dessa vez, os veterinários recomendaram a eutanásia como a opção mais ética diante do sofrimento irreversível. “Resisti muito, mas acabei aceitando. Não foi nada fácil e até hoje penso se tomaria a mesma decisão novamente”, conta Manoel.
Tutores cada vez mais apegados
Esse tipo de situação é cada vez mais comum, segundo a oncologista veterinária Juliana Cirillo. Ela relata que cerca de 30% de seus clientes se autodenominam “pais e mães de pets” e muitos não se veem preparados para perder seus animais. “Já ouvi frases como: ‘Estou preparada para perder meu pai, mas não meu cão’”, relata.
O Brasil, terceiro país do mundo em número de animais de estimação (149 milhões), vive intensamente essa relação afetiva. Uma pesquisa da Quaest (2024) revelou que 93% dos tutores consideram seus pets membros da família e mais da metade chega a comemorar seus aniversários. Além disso, 94% dos entrevistados afirmaram que sua saúde mental melhorou graças à convivência com um animal de estimação.
Esse vínculo, porém, também gera resistência em aceitar a eutanásia. “Muitos tutores procuram segunda, terceira ou até quarta opinião médica porque não estão prontos para aceitar a perda”, explica Cirillo.
Medicina veterinária de ponta: até onde avançar?
Os avanços tecnológicos na medicina veterinária colocam mais pressão nesse dilema. Clínicas especializadas oferecem tratamentos sofisticados, como eletroquimioterapia, terapia-alvo e imunoterapia, antes restritos à medicina humana.
Segundo o veterinário Marcelo Monte Mor, esses recursos ampliam as chances de prolongar a vida, mas também trazem dilemas. “Nosso lema é: tempo de vida com qualidade. Não adianta prolongar a qualquer custo”, defende.
O custo, no entanto, pode ser proibitivo. Uma sessão de quimioterapia pode variar de R$ 500 a R$ 1.000, e muitos pacientes precisam de várias sessões por mês. Isso limita o acesso aos tratamentos e gera endividamento em famílias que tentam salvar seus pets a qualquer preço.
A ética do cuidado: devemos fazer tudo o que podemos?
Para Svenja Springer, professora da Universidade de Viena e especialista em ética veterinária, a questão central não é mais se podemos realizar determinado tratamento, mas se devemos.
“A linha ética é cruzada quando fica claro que os tratamentos não são mais pelo bem do animal, mas apenas para atender ao desejo do tutor”, afirma.
Um estudo liderado por Springer mostrou que quase 60% dos tutores no Reino Unido, Áustria e Dinamarca desejam para seus pets o mesmo nível de tratamento oferecido a humanos. Quanto maior o vínculo afetivo, maior a disposição em investir em procedimentos caros e prolongados.
Eutanásia: ato de amor ou desistência?
Na medicina veterinária, a eutanásia é considerada uma prática humanitária, reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV). O procedimento é indicado quando há sofrimento irreversível e ausência de perspectivas terapêuticas.
Para a médica-veterinária e psicóloga Ingrid Atayde, do CFMV, a decisão pode ser vista como um ato de amor. “É a forma mais humana de pensar no bem-estar do animal. A decisão da eutanásia pode ser o maior ato de desprendimento que um tutor pode tomar”, afirma.
Segundo ela, sinais como dor constante, falta de reação, olhar fixo e dificuldade de locomoção indicam perda significativa de qualidade de vida. “Quando nem os cuidados paliativos funcionam mais, é hora de avaliar”, explica.
O impacto emocional nos veterinários
A pressão não recai apenas sobre os tutores. Veterinários também relatam sofrimento emocional diante de casos em que o tutor se recusa a interromper o tratamento de um animal em sofrimento.
“Veterinários enfrentam um duplo fardo: cuidar do animal e do tutor”, explica Springer. “É emocionalmente desgastante.”
Monte Mor lembra de casos em que pacientes já estavam em estado crítico, mas mesmo assim os tutores não aceitavam a eutanásia. “São momentos muito difíceis. Já vi animais chegarem a um estado de quase cadáver, e ainda assim a família não aceitava parar”, lamenta.
Como saber a hora de parar?
De acordo com o CFMV, o tutor deve observar se o pet ainda tem condições de viver dignamente: acesso a comida, água, conforto, ausência de dor e possibilidade de brincar ou interagir. Quando essas condições não estão mais presentes, pode ser hora de considerar a eutanásia.
Especialistas também recomendam que o procedimento seja feito de forma acolhedora, permitindo que o animal tenha um “último dia especial” ao lado da família e, sempre que possível, que a despedida ocorra em casa.
Qualidade acima da quantidade
O debate sobre a longevidade dos pets reflete mudanças profundas na relação entre humanos e animais. O vínculo afetivo, aliado aos avanços médicos, torna possível que cães e gatos vivam muito mais. Mas também exige uma reflexão ética: prolongar a vida a qualquer custo realmente significa cuidar?
Para veterinários e especialistas, a resposta é clara: mais importante que o tempo é a qualidade da vida dos pets. Decidir pelo fim de tratamentos invasivos ou pela eutanásia, em muitos casos, é uma forma de amor — talvez a mais difícil, mas também a mais justa com quem dedicou sua vida a nos oferecer companhia incondicional.
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Esta matéria é um oferecimento DogTrip


